A
violência exercida pelas forças de segurança era inédita. Ao nível físico,
destacava-se a tortura e ao nível psíquico, as ameaças e o desprezo
permanentes. Assim sendo, onde reside o valor humano? Este não existe.
Simplesmente, o ser humano, aqui, neste espaço de escravidão apenas vale pela
sua capacidade de trabalho. Caso não sirva para trabalhar arduamente, perderá o
seu valor e será substituído por outro prisioneiro.
De
manhã, o ambiente era calmo para os prisioneiros, pois que seria de esperar de
uma série de homens desgastos e moribundos? Era frenético para as forças de
segurança e para outros prisioneiros que davam entrada naquele espaço que
dizia: “O trabalho liberta”. Distribuía-se um simples pão e um café, mas sempre
com vontade de nem sequer manter contacto visual com todos os prisioneiros. Na
buna, existiam dois tipos de trabalhadores, os das minas e os da fábrica. O
trabalho era árduo e duradouro na lama, marcado pelo transporte de pesos
excessivos em longos períodos de tempo e pelo frio intenso assim que este se
revelava pujante, no qual os trabalhadores por medo e vergonha não se atreviam
a rejeitar ou opinar sobre a sua intensidade e condições.
A
verdade é a de que também cheguei a pensar na secção feminina, indagando se
estariam a passar por tais condições ou até piores. Contudo, também a minha
mulher deveria estar a pensar sobre nós, evocando o dia em que nos casámos. Eu
fazia-o em relação ao dia em que nos conhecemos. Confesso que cada dia que
passava colocava-me imperativamente um dilema, dilema esse que suscitava em mim
a dúvida. Qual? A da libertação!
Diariamente
penso que sobrevivo ou morro, mas também coloco a hipótese de, eventualmente,
nunca mais voltar a ver e estar com a minha mulher. Situação que me interpela e
condena e que, por impotência, nada posso fazer para revertê-la.
Num
campo de concentração é inevitável não recordar, melancolicamente, e não passar
por diversas privações e provações. Em nada se vêm gestos de humanidade e de
gratidão, luta-se por meio pão, não se conhece paz, trabalha-se ao ponto de não
se conseguir resistir sem lamentar e assiste-se a um processo de decadência de
todos aqueles que nos circundam e de nós próprios.
O
trabalho forçado destinava-se aos capacitados, por assim dizer, aos
trabalhadores inofensivos, que ansiavam pela esperança da sua libertação como
forma de continuar a enfrentar o sofrimento quotidiano da sua sobrevivência no
campo. As câmaras de gás destinavam-se àqueles que não conseguiam acompanhar o
ritmo de trabalho e que não eram capazes de produzir de forma necessária. O
destino, destes modificara. Não se tratava da sobrevivência, mas sim da morte.
Na
Buna, o dia começava com a chamada geral antes do amanhecer, seguia-se o
trabalho forçado dos prisioneiros desde muito cedo, se não me engano desde as 3
da manhã. Inúmeras tarefas sucediam-se interminavelmente durante onze horas
consecutivas. O tempo de espera da chamada era, mais ou menos, uma hora, o que
em manhãs de chuva penetrante, de céu cinzento e muitíssimo encoberto revelava
um pesadelo, pois encontrávamo-nos com um simples uniforme de estofa fina, que
não permitia proteger-nos das condições adversas do estado de tempo. Além
disso, assim que começávamos a trabalhar na fábrica da buna, a lama
entranhava-se nos nossos pés, mãos e restante corpo, o que dificultava o nosso
desempenho, gerando um clima de exaustão pela nossa parte e de consequente
incompreensão por parte dos agentes do campo. Quem não resistia a tais
obrigações, perdera a vida e em resultado os SS, com o apoio de dois prisioneiros
iam buscar os cadáveres nus, colocando-os de pé, como se tratassem de simples
animais.
À
escravatura juntavam-se as péssimas condições alimentares que se restringiam ao
pão bolorento de castanha, ao café, a trinta gramas de salsicha de cavalo
sarnento, a uma margarina e a uma porção de metade de um litro de sopa com
água, urticas e erva daninha. Tudo somado dava 700 calorias diárias. O
anoitecer anunciava outro pesadelo, não só pela falta de espaço dos
dormitórios, que se encontravam apinhados de prisioneiros, mas também pelas
terríveis condições de higiene, dado que a latrina tinha de servir para todos
eles.
A
noite era calma, mas a escuridão aterrorizadora do dormitório em que
permanecíamos refletia o modo como, por dentro, nos encontrávamos, desprovidos
de esperança e de compaixão. Para mim, o passado era distante, mas,
concomitantemente presente porque a nostalgia invadia incessantemente o meu
sono.
O amanhecer era, por
vezes, belo, sendo o do meu último dia no campo o mais marcante. Porquê? Não
consigo dar resposta. Será algo metafísico? Talvez! Acordei a sonhar com
memórias, como por exemplo, o dia da minha primeira viagem com a minha mulher e
o último dia em que jantámos com toda a nossa família, foram sem dúvida
momentos de expressa felicidade.