27 de abril de 2017


Com 18 anos somos adolescentes e o mundo parece desenrolar-se aos nossos pés. Nasci judeu. O meu Bar Mitzvá ocorreu três anos antes, pelo que já era considerado um membro do mundo dos adultos. Cabia-me a mim fazer escolhas. Porém, o meu futuro parecia cada vez mais limitado. No ano de 1933, eclodiu na Alemanha a primeira vaga antissemita. Tudo começou assim que inúmeros professores universitários começaram a ser afastados do seu cargo apenas pelo facto de terem ascendência judaica. O meu desejo de ser cientista parecia agora mais curto e impossível de se realizar.

Posteriormente, seguiu-se a divulgação das leis de Nuremberg no ano de 1935, que proibiam o casamento e as relações sexuais entre judeus e arianos. Mais tarde, ficaríamos privados de frequentar lugares públicos e de promover atividades comerciais. Por fim, sucedera-se a solução final do problema judaico, a última alternativa dos nazis para nos eliminar constituída pela criação de vários campos de concentração e de extermínio, destacando-se o de Auschwitz.


A madrugada surpreendeu-nos como uma traição.
Como se o novo sol se associasse aos homens na deliberação de nos destruir. 
Primo Levi, "Se isto é um homem"

26 de abril de 2017


Perante a ameaça, fugimos para Amesterdão. Uma viagem que traduziu à letra a nossa única hipótese de escapar ao antissetimismo que alastrava por todos os recantos da sociedade alemã.

O dia era lindo. O sol iluminava a esperança de nos vermos livres do terror dos campos de concentração. Em Amesterdão, esperavam-nos familiares da minha mulher. Tios, primos e irmãos. O rosto dela evidenciava claramente a alegria de rever os seus entes queridos. 

Várias eram as emoções que sentíamos e que os nossos rostos perfilhavam. Depois de recebidos, com toda a hospitalidade, pelos nossos familiares, rompemos ruas, becos e até praças. Até que…  



A angústia crescia: de súbito, 
como que projetados no ar por raios invisíveis de uma espécie de fonte diabólica...
Imre Kertész, "A recusa"



Em 1942, foi anunciado em vários jornais holandeses e alemães que os judeus iriam ser transportados para campos de trabalho forçado. Nesta altura, colocavam cartas nas caixas de correio dos mesmos com o formulário que indicava o dia e a hora de partida dos comboios que os levariam para o campo. Neste ano, optámos por não responder à carta e durante quatro meses decidimos viver escondidos num soalho de uma casa em que no cimo da mesma, abria-se uma porta de um velho edifício com uma sala grande, uma cozinha e um quarto. Tudo coexistia. Andávamos descalços durante o dia e ocupavamo-nos, lendo e escrevendo. Não podíamos utilizar torneiras e casas de banho entre as nove e as sete da manhã. Éramos auxiliados pelas pessoas que prestavam ajuda àqueles que se encontravam nos esconderijos.

 Encarregavam-se de nos fornecer os alimentos, livros e jornais e em caso de necessidade, médicos de confiança, pelo que se afirmava uma tarefa árdua, rara e bem paga. Tal era o medo e a angústia que à noite a vontade era apenas de chorar.

Tendo em conta os inúmeros esconderijos que havia, a polícia alemã decidiu tomar medidas mais eficazes, ao organizar rusgas e invasão de diversos bairros. Quando entravam nos esconderijos, faziam pilhagem de materiais valiosos, dinheiro e alimentos. A vigilância apertou-se e intensificaram-se as buscas, sucedendo-se interminavelmente, até que chegou a nossa vez. Não queríamos acreditar.



Por esses dias, lia justamente sobre a morte de trezentos e quarenta judeus holandeses nas pedreiras de Mauthausen. À chegada do comboio, o lugar-tenente Ernstberger faz compreender a Glas, um preso político que é secretário do barracão: de acordo com as ordens, eles não devem ficar vivos mais de seis semanas. No dia seguinte, os judeus holandeses são conduzidos à pedreira. Em vez de tomarem os cento e quarenta e oito degraus de pedra, têm de descer por entulho abrupto. Mesmo no fundo, põem-lhes aos ombros uma tábua, blocos de pedra demasiados grandes, que é preciso levar a correr… Vários judeus holandeses atiram-se da falésia logo no primeiro dia. Depois, nove a doze pessoas saltam juntas, dando-se as mãos…
Imre Kertész, “A recusa”

25 de abril de 2017


Completávamos 25 e 27 anos, eu e a minha mulher. Partíramos da capital alemã numa manhã de nevoeiro, o que tornava o nosso destino ainda mais tenebroso e a nossa alma a desaparecer aos poucos e irreversivelmente. Seguíamos encostados a dezenas de pessoas, que imploravam uma réstia de humanidade e gesticulávamos vagarosamente um com o outro, visto que as forças já eram quase inexistentes.



Vós que viveis tranquilos

Nas vossas casas aquecidas,

Vós que encontrais regressando à noite

Comida quente e rostos amigos:

Considerai se isto é um homem

Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara.
Primo Levi, "Se isto é um homem"

A viagem duraria cinco dias, mas parecia demorar um tempo indefinível. Os vagões eram doze e nós setecentos, ou seja, a limitação do espaço comprometia a capacidade de nos movermos, tendo que se ir durante longos períodos de tempo em pé, e, por conseguinte, de repousarmos, pelo que o sono era imenso. Por outro lado, a fome era intensa, a sede incalculável e o ambiente era, sobretudo, de vazio, de desespero e de angústia de todos os passageiros que se encontravam no nosso vagão.


As portas foram imediatamente trancadas, mas o combóio só partiu à noite.
O comboio viajava devagar, com longas e enervantes paragens.
Eu tinha no coração o pensamento do retorno e, cruelmente, imaginava qual seria a alegria sobrehumanda dessa nova passagem, com as portas dos vagões escancaradas.
Das quarenta e cinco pessoas do meu vagão, só quatro tornariam as suas casas, e o meu vagão foi, de longe, o mais afortunado.
Primo Levi, "Se isto é um homem”

A nossa essência começava a perder-se pelas condições deploráveis a que nos estavam a submeter. Estávamos perto de Monowitz-Buna, se não me engano nas suas imediações. Era um dos quarenta subcampos do complexo principal de Auschwitz, sendo um campo de trabalho escravo para a fábrica I.G Farben estabelecido como complexo industrial pela SS a pedido desta no ano de 1943. 


24 de abril de 2017


De repente, a porta do nosso vagão abrira-se e o vento que se fizera sentir obrigava à nossa deslocação para outra parte do campo. Tivemos sorte de os SS, uma das forças de segurança do Terceiro Reich, permitirem que beneficiássemos de uma área mais protegida. Estávamos em janeiro de 1944, uma altura em que o frio e o vento se mostravam agressivos. 


Tinham deixado de existir ricos, notáveis, «personalidades».
Apenas existiam condenados à mesma pena, ainda desconhecida.

Elie Wiesel, "Noite"

Rapidamente nos dividiram, homens para a esquerda. Mulheres para a direita. De seguida, ficáramos despidos de roupa e de objetos pessoais. 





Era difícil reconhecê-las, e identificá-las como mulheres.

Imre Kértesz, "Sem destino"

Após, era a vez dos nossos cabelos que num ápice caiam infinitamente sobre os nossos pés. Por fim, sucedera-se um banho de água quente, por assim dizer, a única coisa digna, que nos fizeram desde que chegámos cá. 




Em menos de dez minutos todos nós homens válidos fomos reunidos num grupo.
 Primo Levi, "Se isto é um homem"

23 de abril de 2017



No dia seguinte fui trabalhar para a fábrica I.G.Farben. Os meus companheiros de infortúnio eram homens de muitas nacionalidades e proveniências, pelo que a dificuldade de os entender e aos Kapo, comandantes e chefes do alojamento e do crematório do campo de trabalho escravo (Buna) era bastante grande. Estávamos condenados aos interesses das forças de segurança do campo, que por sua vez se submetiam cegamente à vontade do Fuhrer em defender a superioridade da nação. O importante para eles era usarem-nos para produzir armamento, projéteis, explosivos, borracha sintética e uma série de outros recursos materiais. 


Encontramo-nos em Monowitz, próximo de Auschwitz.
Este campo é um campo de trabalho, em alemão diz-se Arbeitslager; todos os prisioneiros trabalham numa fábrica de borracha, que se chama Buna. 
Primo Levi, "Se isto é um homem"


22 de abril de 2017



Monowitz-Buna servia, sobretudo, para fornecer trabalho escravo para o seu complexo industrial, nomeadamente para a produção de borracha sintética, mas também para empregar trabalhadores nas minas. Nesta prisão de milhares de inocentes, pereceram mais de cinquenta mil prisioneiros em resultado da fome, das doenças, das experiências médicas, dos assassinatos, e, sobretudo, da violência exercida pela Secção de Segurança.



Depois está claro que nos irão matar, quem pensa sobreviver está louco, 
quer dizer que caiu no jogo deles.
Primo Levi, "Se isto é um homem"


Direitos e liberdade eram termos desconhecidos naquele lugar rodeado de arame farpado, onde nos encontrávamos. Ainda assim, a humildade era visível na troca de olhares de prisioneiros como Wiesel, um judeu e ativista de nacionalidade norte-americana e Levi, um italiano que rondava os 24 anos e que trabalhava na fábrica I.G. Farben da buna como químico. Ambos irradiavam alguma esperança e convicção. Contudo, o sentimento que prevalecia neles era, predominantemente, o de terror e de angústia.


21 de abril de 2017



Tatuados com o número de identificação necessário à chamada, vestidos às riscas como prisioneiros, separados fisicamente, homens de mulheres, mas, sempre com o pensamento focado na nossa família, éramos incapazes de perceber a razão pela qual estávamos ali. 


O meu nome é 174517
fomos batizados
guardaremos até à morte a marca tatuada no braço esquerdo.
Primo Levi - "Se isto é um homem"





Ainda travei um monólogo perguntando-me a mim mesmo se tinha cometido algum crime, se não tinha respeitado o outro na sua diferença, se tinha culpa de ser racialmente diferente. 


É homem quem mata,
é homem quem faz ou sofre injustiças;
não é homem quem, perdida qualquer vergonha, divida a cama com um cadáver.
Primo Levi, "Se isto é um homem"

Refleti, ainda, sobre uma série de dúvidas, nomeadamente se o holocausto seria baseado na própria lógica moderna de conceber o homem, a vida, a natureza e os valores, se seria um produto da modernidade ou um fracasso da civilização moderna e se se relacionaria apenas com motivos religiosos ou culturais ou como um caso extremo do repulsivo preconceito. Mas considerei em vão toda esta reflexão, visto que estas perguntas não seriam respondidas.




20 de abril de 2017



A violência exercida pelas forças de segurança era inédita. Ao nível físico, destacava-se a tortura e ao nível psíquico, as ameaças e o desprezo permanentes. Assim sendo, onde reside o valor humano? Este não existe. Simplesmente, o ser humano, aqui, neste espaço de escravidão apenas vale pela sua capacidade de trabalho. Caso não sirva para trabalhar arduamente, perderá o seu valor e será substituído por outro prisioneiro.

De manhã, o ambiente era calmo para os prisioneiros, pois que seria de esperar de uma série de homens desgastos e moribundos? Era frenético para as forças de segurança e para outros prisioneiros que davam entrada naquele espaço que dizia: “O trabalho liberta”. Distribuía-se um simples pão e um café, mas sempre com vontade de nem sequer manter contacto visual com todos os prisioneiros. Na buna, existiam dois tipos de trabalhadores, os das minas e os da fábrica. O trabalho era árduo e duradouro na lama, marcado pelo transporte de pesos excessivos em longos períodos de tempo e pelo frio intenso assim que este se revelava pujante, no qual os trabalhadores por medo e vergonha não se atreviam a rejeitar ou opinar sobre a sua intensidade e condições.

A verdade é a de que também cheguei a pensar na secção feminina, indagando se estariam a passar por tais condições ou até piores. Contudo, também a minha mulher deveria estar a pensar sobre nós, evocando o dia em que nos casámos. Eu fazia-o em relação ao dia em que nos conhecemos. Confesso que cada dia que passava colocava-me imperativamente um dilema, dilema esse que suscitava em mim a dúvida. Qual? A da libertação!

Diariamente penso que sobrevivo ou morro, mas também coloco a hipótese de, eventualmente, nunca mais voltar a ver e estar com a minha mulher. Situação que me interpela e condena e que, por impotência, nada posso fazer para revertê-la.

Num campo de concentração é inevitável não recordar, melancolicamente, e não passar por diversas privações e provações. Em nada se vêm gestos de humanidade e de gratidão, luta-se por meio pão, não se conhece paz, trabalha-se ao ponto de não se conseguir resistir sem lamentar e assiste-se a um processo de decadência de todos aqueles que nos circundam e de nós próprios.

O trabalho forçado destinava-se aos capacitados, por assim dizer, aos trabalhadores inofensivos, que ansiavam pela esperança da sua libertação como forma de continuar a enfrentar o sofrimento quotidiano da sua sobrevivência no campo. As câmaras de gás destinavam-se àqueles que não conseguiam acompanhar o ritmo de trabalho e que não eram capazes de produzir de forma necessária. O destino, destes modificara. Não se tratava da sobrevivência, mas sim da morte.
Na Buna, o dia começava com a chamada geral antes do amanhecer, seguia-se o trabalho forçado dos prisioneiros desde muito cedo, se não me engano desde as 3 da manhã. Inúmeras tarefas sucediam-se interminavelmente durante onze horas consecutivas. O tempo de espera da chamada era, mais ou menos, uma hora, o que em manhãs de chuva penetrante, de céu cinzento e muitíssimo encoberto revelava um pesadelo, pois encontrávamo-nos com um simples uniforme de estofa fina, que não permitia proteger-nos das condições adversas do estado de tempo. Além disso, assim que começávamos a trabalhar na fábrica da buna, a lama entranhava-se nos nossos pés, mãos e restante corpo, o que dificultava o nosso desempenho, gerando um clima de exaustão pela nossa parte e de consequente incompreensão por parte dos agentes do campo. Quem não resistia a tais obrigações, perdera a vida e em resultado os SS, com o apoio de dois prisioneiros iam buscar os cadáveres nus, colocando-os de pé, como se tratassem de simples animais.

À escravatura juntavam-se as péssimas condições alimentares que se restringiam ao pão bolorento de castanha, ao café, a trinta gramas de salsicha de cavalo sarnento, a uma margarina e a uma porção de metade de um litro de sopa com água, urticas e erva daninha. Tudo somado dava 700 calorias diárias. O anoitecer anunciava outro pesadelo, não só pela falta de espaço dos dormitórios, que se encontravam apinhados de prisioneiros, mas também pelas terríveis condições de higiene, dado que a latrina tinha de servir para todos eles.

A noite era calma, mas a escuridão aterrorizadora do dormitório em que permanecíamos refletia o modo como, por dentro, nos encontrávamos, desprovidos de esperança e de compaixão. Para mim, o passado era distante, mas, concomitantemente presente porque a nostalgia invadia incessantemente o meu sono.

O amanhecer era, por vezes, belo, sendo o do meu último dia no campo o mais marcante. Porquê? Não consigo dar resposta. Será algo metafísico? Talvez! Acordei a sonhar com memórias, como por exemplo, o dia da minha primeira viagem com a minha mulher e o último dia em que jantámos com toda a nossa família, foram sem dúvida momentos de expressa felicidade.

19 de abril de 2017



Chegara uma notícia boa, a da nossa libertação, aliás a de todos os prisioneiros que conseguiram resistir a tantas atrocidades, entre eles amigos de longa data, como Wiesel e Levi. Ambos se encontravam irreconhecíveis física e psicologicamente. Para mim e neste sentido, liberdade e destino não coincidem. A nossa libertação mostra que o nosso destino não era o previsível. Fomos finalmente libertados do aprisionamento de Auschwitz, em 27 de janeiro de 1945 pelo exército vermelho da URSS a par com sete mil prisioneiros. Chegara ao fim um ano de sofrimento, de terror e de angústia. A morte, essa ficou como desejo falhado, pelo menos para alguns.


 O nosso primeiro gesto como homens livres foi o de nos ativarmos aos mantimentos.
Só pensávamos naquilo. Nem na vingança nem nos pais.
Só no pão.
Elie Wiesel, "Noite"


Após momentos de enorme emoção, emergia em mim, uma vontade intrínseca de rever todos aqueles que dão sentido e uniformização à minha vida, família e amigos. Seguiu-se o momento do reencontro com alguns deles, o que despoletou em mim uma emoção tal ao ponto de não ser capaz de conter as lágrimas, que caiam interminavelmente sobre o meu rosto faminto e desprovido de vida.

A minha mãe espera-me e ficará seguramente feliz por me ver, a pobre
Imre Kertész, "Sem destino"



18 de abril de 2017



Tudo isto parecia um sonho, mas na verdade era a realidade. Apesar de nos sentirmos privilegiados pela nossa libertação neste relevante ano de 1945, a verdade é a de que o fim da II Guerra Mundial tivera efeitos devastadores para os países beligerantes em dois planos. No plano material com a enorme mobilização e consequente escassez de recursos desta natureza e no plano humano com o número alarmante de homens mobilizados que se tornaram milhares de vítimas decorrentes das vicissitudes da mesma. Importa também referir que para além das perdas humanas e da destruição material, destaca-se a desorganização da sociedade, sobretudo a de leste. Muito possivelmente é a Polónia que apresenta a este respeito o caso mais dramático, visto que em resultado da Conferência de Ialta, realizada na Crimeia em fevereiro deste ano, via-se obrigada à definição das suas fronteiras.



Quando fomos libertados ainda o medo não tinha desaparecido da nossa essência devido ao Antissemitismo que ainda se fazia sentir em muitas partes da Europa, e também pelo enorme trauma que tínhamos sofrido e nos tornara permanentemente inseguros.

Na sequência, eu soube que estas afirmações escondiam a infância e a adolescência da minha mulher. Esta infância e esta adolescência, embora a minha mulher tivesse nascido após Auschwitz, estavam colocadas sob o signo de Auschwitz. Mais precisamente, sob o signo da judeidade. Sob o signo fo lodo, para citar as palavras da minha mulher… não se pode curar Auschwitz, ninguém pode recuperar da doença de Auschwitz
Irme Kertész, “Kaddish para uma crianças que não vai nascer”


A alimentação revelava-se, agora, fortemente condicionada. Fomos alvo de subnutrição durante um longo período de tempo, e por isso, a ingestão de alguns alimentos era dolorosa e muitas das vezes impossível de se fazer, tínhamos de ingerir alguns líquidos, sempre de forma controlada, para depois passarmos aos alimentos sólidos. Os vómitos e as dores persistentes no estômago colocavam-nos numa situação de risco e que se repercutia no nosso bem-estar físico e mental.

Toda a gente me pergunta só pelas vicissitudes, pelos «horrores»: todavia, no que me diz respeito, é talvez essa a experiência mais memorável. Sim, é disso, da felicidade dos campos de concentração, que eu lhes falarei na próxima vez, quando me perguntarem
Imre Kertész, "Sem destino"

17 de abril de 2017


Ainda que pareça estranho, sinto-me contente porque, embora, tenha sido submetido durante um ano a condições alimentares, de higiene e de trabalho repugnantes nas quais o ser humano é uma espécie de cobaia despedido de direitos, personalidade e de valores e também ao facto de nunca mais voltar a ver e a estar com Gonçalo e Adam, duas pessoas incríveis que conheci no local onde trabalhava e com as quais adorei relacionar-me no campo em que estive, tenho a esperança de conseguir manter sempre contacto com Wiesel e Levi, dois grandes amigos que fiz, o que me dá um grande conforto e segurança. Por incrível que pareça, duas amizades construídas no ano mais avassalador de toda a minha vida. O ano do aprisionamento em Auschwitz.


Quando falo com alguém sobre Auschwitz e sobre o que se faz para sobreviver num espaço que anuncia a angústia e o terror, não hesito em falar em direitos humanos. Em Auschwitz o homem não é verdadeiramente homem, porque ser homem é ser livre. Não concordas Sara? Sim, claro Tom. Isto foi, sem dúvida, o que verifiquei, aliás o que nós verificámos ao assistir ao dia-a-dia da sobrevivência de milhares de indivíduos que não conseguiam ter esperança de escapar ao gaseamento ou ao trabalho forçado no campo de concentração. Foi pelo facto de termos testemunhado a experiência de sobrevivência em Auschwitz que podemos afirmar que ser-se homem é ser-se grande. É sonhar, ter objetivos definidos que superem os ímpetos da emoção, mas sobretudo, reconhecer que enquanto seres humanos não somos totalmente iguais, pois existem diferenças a vários níveis e que nos permitem distinguir dos demais, e por isso, consideramos que o Holocausto radica na indiferença, na intolerância e na não-aceitação do outro, como ser diferente de nós mesmos do ponto de vista biológico e cultural. Porém e admitindo algumas diferenças entre nós, na natureza e na dignidade humana somos todos iguais.