20 de abril de 2017



A violência exercida pelas forças de segurança era inédita. Ao nível físico, destacava-se a tortura e ao nível psíquico, as ameaças e o desprezo permanentes. Assim sendo, onde reside o valor humano? Este não existe. Simplesmente, o ser humano, aqui, neste espaço de escravidão apenas vale pela sua capacidade de trabalho. Caso não sirva para trabalhar arduamente, perderá o seu valor e será substituído por outro prisioneiro.

De manhã, o ambiente era calmo para os prisioneiros, pois que seria de esperar de uma série de homens desgastos e moribundos? Era frenético para as forças de segurança e para outros prisioneiros que davam entrada naquele espaço que dizia: “O trabalho liberta”. Distribuía-se um simples pão e um café, mas sempre com vontade de nem sequer manter contacto visual com todos os prisioneiros. Na buna, existiam dois tipos de trabalhadores, os das minas e os da fábrica. O trabalho era árduo e duradouro na lama, marcado pelo transporte de pesos excessivos em longos períodos de tempo e pelo frio intenso assim que este se revelava pujante, no qual os trabalhadores por medo e vergonha não se atreviam a rejeitar ou opinar sobre a sua intensidade e condições.

A verdade é a de que também cheguei a pensar na secção feminina, indagando se estariam a passar por tais condições ou até piores. Contudo, também a minha mulher deveria estar a pensar sobre nós, evocando o dia em que nos casámos. Eu fazia-o em relação ao dia em que nos conhecemos. Confesso que cada dia que passava colocava-me imperativamente um dilema, dilema esse que suscitava em mim a dúvida. Qual? A da libertação!

Diariamente penso que sobrevivo ou morro, mas também coloco a hipótese de, eventualmente, nunca mais voltar a ver e estar com a minha mulher. Situação que me interpela e condena e que, por impotência, nada posso fazer para revertê-la.

Num campo de concentração é inevitável não recordar, melancolicamente, e não passar por diversas privações e provações. Em nada se vêm gestos de humanidade e de gratidão, luta-se por meio pão, não se conhece paz, trabalha-se ao ponto de não se conseguir resistir sem lamentar e assiste-se a um processo de decadência de todos aqueles que nos circundam e de nós próprios.

O trabalho forçado destinava-se aos capacitados, por assim dizer, aos trabalhadores inofensivos, que ansiavam pela esperança da sua libertação como forma de continuar a enfrentar o sofrimento quotidiano da sua sobrevivência no campo. As câmaras de gás destinavam-se àqueles que não conseguiam acompanhar o ritmo de trabalho e que não eram capazes de produzir de forma necessária. O destino, destes modificara. Não se tratava da sobrevivência, mas sim da morte.
Na Buna, o dia começava com a chamada geral antes do amanhecer, seguia-se o trabalho forçado dos prisioneiros desde muito cedo, se não me engano desde as 3 da manhã. Inúmeras tarefas sucediam-se interminavelmente durante onze horas consecutivas. O tempo de espera da chamada era, mais ou menos, uma hora, o que em manhãs de chuva penetrante, de céu cinzento e muitíssimo encoberto revelava um pesadelo, pois encontrávamo-nos com um simples uniforme de estofa fina, que não permitia proteger-nos das condições adversas do estado de tempo. Além disso, assim que começávamos a trabalhar na fábrica da buna, a lama entranhava-se nos nossos pés, mãos e restante corpo, o que dificultava o nosso desempenho, gerando um clima de exaustão pela nossa parte e de consequente incompreensão por parte dos agentes do campo. Quem não resistia a tais obrigações, perdera a vida e em resultado os SS, com o apoio de dois prisioneiros iam buscar os cadáveres nus, colocando-os de pé, como se tratassem de simples animais.

À escravatura juntavam-se as péssimas condições alimentares que se restringiam ao pão bolorento de castanha, ao café, a trinta gramas de salsicha de cavalo sarnento, a uma margarina e a uma porção de metade de um litro de sopa com água, urticas e erva daninha. Tudo somado dava 700 calorias diárias. O anoitecer anunciava outro pesadelo, não só pela falta de espaço dos dormitórios, que se encontravam apinhados de prisioneiros, mas também pelas terríveis condições de higiene, dado que a latrina tinha de servir para todos eles.

A noite era calma, mas a escuridão aterrorizadora do dormitório em que permanecíamos refletia o modo como, por dentro, nos encontrávamos, desprovidos de esperança e de compaixão. Para mim, o passado era distante, mas, concomitantemente presente porque a nostalgia invadia incessantemente o meu sono.

O amanhecer era, por vezes, belo, sendo o do meu último dia no campo o mais marcante. Porquê? Não consigo dar resposta. Será algo metafísico? Talvez! Acordei a sonhar com memórias, como por exemplo, o dia da minha primeira viagem com a minha mulher e o último dia em que jantámos com toda a nossa família, foram sem dúvida momentos de expressa felicidade.