Tudo isto parecia um sonho, mas na verdade era a
realidade. Apesar de nos sentirmos privilegiados pela nossa libertação neste
relevante ano de 1945, a verdade é a de que o fim da II Guerra Mundial tivera
efeitos devastadores para os países beligerantes em dois planos. No plano
material com a enorme mobilização e consequente escassez de recursos desta
natureza e no plano humano com o número alarmante de homens mobilizados que se
tornaram milhares de vítimas decorrentes das vicissitudes da mesma. Importa também
referir que para além das perdas humanas e da destruição material, destaca-se a
desorganização da sociedade, sobretudo a de leste. Muito possivelmente é a
Polónia que apresenta a este respeito o caso mais dramático, visto que em
resultado da Conferência de Ialta, realizada na Crimeia em fevereiro deste ano,
via-se obrigada à definição das suas fronteiras.
Quando fomos libertados ainda o medo não tinha
desaparecido da nossa essência devido ao Antissemitismo que ainda se fazia
sentir em muitas partes da Europa, e também pelo enorme trauma que tínhamos
sofrido e nos tornara permanentemente inseguros.
Na sequência, eu soube que estas afirmações escondiam a infância e a
adolescência da minha mulher. Esta infância e esta adolescência, embora a
minha mulher tivesse nascido após Auschwitz, estavam colocadas sob o signo de
Auschwitz. Mais precisamente, sob o signo da judeidade. Sob o signo fo lodo,
para citar as palavras da minha mulher… não se pode curar Auschwitz, ninguém
pode recuperar da doença de Auschwitz
Irme Kertész, “Kaddish para uma crianças que não vai
nascer”
A alimentação revelava-se, agora, fortemente condicionada.
Fomos alvo de subnutrição durante um longo período de tempo, e por isso, a
ingestão de alguns alimentos era dolorosa e muitas das vezes impossível de se
fazer, tínhamos de ingerir alguns líquidos, sempre de forma controlada, para
depois passarmos aos alimentos sólidos. Os vómitos e as dores persistentes no
estômago colocavam-nos numa situação de risco e que se repercutia no nosso
bem-estar físico e mental.
Toda a gente me pergunta só
pelas vicissitudes, pelos «horrores»: todavia, no que me diz respeito, é talvez
essa a experiência mais memorável. Sim, é disso, da felicidade dos campos de
concentração, que eu lhes falarei na próxima vez, quando me perguntarem
Imre Kertész, "Sem destino"